Posts Tagged ‘meritocracia’

A constante desconfiança de quem te vê e se assusta ao saber que é engenheiro, advogado, universitário.
O mesmo “susto” ocorre quando vêm que você tem condições financeiras razoáveis, casa, carro, pode viajar nas férias…
Daí, invariavelmente, te “clareiam”, como se um tom de pele mais claro o fizesse digno do lugar ou situação. Te chamam e classificam como “moreno”, como se “negro” fosse pejorativo, impróprio, sujo até.

“Mas… você não é negro!”
É uma frase de quem busca aproximação, elogio. A pessoa que a diz geralmente quer causar aquela impressão de que você “é gente”, de que “pertence” a um grupo mais aceito. E não ao grupo dos negros.
Se há contestação de nossa parte, a emenda do interlocutor fica invariavelmente pior que o soneto.
“Tá bom. Eu só quis dizer que você não é negro, neeeegro!”

Os heróis demoraram a aparecer.
Me lembro na década de 80, de Zezé Motta, do Thaide, dos gêmeos Os Metralhas com sua frase inesquecível: “Se hoje eu pareço um vilão pra você é porque antes não me deram chance de vencer”

Só que… Zezé tinha que dividir as oportunidades com Neusa Borges, Ruth de Souza e Chica Xavier.
Na época, quando apareciam oportunidades, não fazia sentido para a TV inserir mais de uma atriz negra como personagem. E só eram atrizes principais quando a estória pedia, como no Xica da Silva de Cacá Diegues.
Na música, igualmente, mesmo aceitos e de certa forma vangloriados, o espaço nas gravadoras e na mídia era maior para rappers como Gabriel, o Pensador, branco.
As acanhadas brechas para se falar abertamente sobre racismo, por exemplo, surgiam fora dos canais e dos horários mais assistidos.

“Verdadeiros heróis, somos nós” – dizia uma letra de um grupo de rap que não chegou a fazer sucesso.
O que Lecão, Xandão e Lord aludiam na época é realidade até hoje. Os periféricos, majoritariamente pardos e negros, acordam mais cedo, por morarem mais longe do trabalho, ganham menores salários e têm de se esforçarem mais (que o normal) para merecerem promoções e melhores condições.
Falar em meritocracia na periferia é pregar uma condição igualitária que não existe.
Não digo que precisamos desistir. Longe disso. Sigo, aliás, contrário às políticas de cotas que consideram somente a cor da pele como critério.

Houve evolução. Gradativa e lenta, porém inegável.
Graças principalmente ao esforço dos verdadeiros heróis, que surgem e se multiplicam.
A segmentação da revista Raça e da internet, provaram que pode haver desenvolvimento no mercado específico.
A faculdade Zumbi dos Palmares abriu as perspectivas de um grupo que acreditava (arrisco dizer que ainda acredita) que não poderia sequer pisar, usar o espaço de uma USP e de outras Universidades públicas.
Hoje, com ou sem cotas, seguimos na batalha diária de transcender o senso comum, deixando frases como: “É você o Engenheiro/a dentista/a professora da minha filha”, cada vez mais artificiais e ridículas.

Mas a evolução segue esbarrando em Tais Araujo, Lázaro Ramos, Maju Coutinho, Preta Gil.
Provando aos descrentes que o racismo está aí, claro como água, mesmo para quem tem sucesso e é “Global”.
Muitos se incomodam com esse sucesso.
Muitos atravessam a rua quando nos aproximamos pela calçada, independente dos trajes e modos.
Muitos se levantam quando sentamos ao seu lado, sobretudo em ambientes “premium“, como restaurantes caros e salas VIP; e quando não o fazem por impossibilidade, nota-se o indisfarçável desconforto.
Muitos não aceitam que o Mano Brown faça shows na Vila Olímpia; muitos não aceitam Emicida e os seus no São Paulo Fashion Week.

E foi um texto do Emicida que desencadeou esse post.
Não de revolta, daquelas que destilam veneno e esperam passivamente que o mal não atinja a si mesmo. De análise.
São tantas as recordações, tantos exemplos e obstáculos…
A grande maioria igualmente vivido por amigos na mesma condição. Muitas vezes compartilhado. Muitas vezes excluído da memória ou negado pra si mesmo, ora por não querer ver o óbvio, ora esquecido intencionalmente por proteção própria.
“Levanta e Anda” é daqueles hinos que me renovam as energias.

Irmão, você não percebeu
Que você é o único representante
Do seu sonho na face da terra
Se isso não fizer você correr, chapa
Eu não sei o que vai

Juntamente com “Sou mais você”, dos Racionais MC:

Olha aí, mais um dia todo seu
(…)
A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar

Emicida lançou um clipe recentemente: “Inácio da Catingueira”, enaltecendo um daqueles heróis desconhecidos enquanto conta a própria história, enaltece o que atingiu e “prepara” os detratores para suportar um sucesso, dele, ainda maior.
Inácio foi letrista e poeta, cantor de cordel, escravo iletrado do século XIX.
Emicida é hoje mais um herói, exemplo de sucesso a seguir para os que não desejam a ascensão rápida e perigosa de “Soldado do Morro”. O crime e o tráfico não precisam ser a realidade.

Finalizo como Emicida fez em seu texto, que pode ser lido aqui.

(…)
Acalme seus ânimos e volte pro front com uma mira melhor. De nada adianta ser uma metralhadora giratória se você estiver mirando em seu próprio pé.

Sejamos mais. Sempre.

por Celsão correto

links para letras das músicas citadas. Escolho todas do Vagalume, por constarem também os clipes, para quem interessar…
Sou mais você, Levanta e Anda, Soldado do Morro e Inácio da Catingueira, de onde tirei a figura.

Obviamente, a maioria delas está também no YouTube. Aqui o link para o “Rap da Abolição”, dos gêmeos “Os Metralhas” e aqui uma aparição dos mesmos no programa da Angélica em 1989.

 

DanPrice_2Surreal? Acho que não. Eu utilizaria a palavra inusitado.

Desde Abril deste ano, sociólogos, economistas e o empresariado americano discutem a “loucura” feita por Dan Price, fundador e CEO de uma empresa de processamento de compras com cartão de crédito.
Baseado em uma pesquisa sobre felicidade, o empresário decidiu aumentar e igualar os salários de todos os 120 funcionários de sua empresa em 70 mil dólares anuais.
O que daria aproximadamente 18.600 reais mensais, no câmbio de hoje, é mais que o triplo do salário mínimo da terra do Tio Sam ou “terra da prosperidade”; que paga 1600 dólares por mês para seus assalariados (pouco mais que R$5500).

O plano parte da premissa de que ele próprio reduzirá o seu salário a este patamar e que funcionários felizes produzirão mais. Mas obviamente, não agradou a todos: alguns dos funcionários mais experientes (e, provavelmente, com salários mais próximos do valor estabelecido) pediram demissão.

Três pontos a discutir aqui.

O primeiro é a desigualdade. Os Estados Unidos são conhecidos mundialmente pela disparidade entre os salários de funcionários iniciantes e diretores ou CEOs. O valor chega a 300 vezes e não é sequer tomado como normal pela maioria dos que estão no topo.
Não há necessidade de haverem pagamentos tão diferentes entre colegas de empresa ou entre funcionarios e seus chefes diretos. Isso seguramente causa mais problemas de relacionamento e cooperação no trabalho que traz beneces a empresa e ao ambiente capitalista competitivo.
A desigualdade pode haver mesmo sem existir miséria ou pobreza extrema!

O segundo é a imperfeição do modelo capitalista (e do próprio ser humano).
Por mais que a ideia seja original, criativa e bem-intencionada. O Sr. Price tem, a meu ver, uma bomba-relógio nas mãos; já que a empresa está no âmago do capitalismo, e considerando que o ser humano está longe da perfeição.
Para os empregados, o que trouxe alegria para muitos gerará revolta futura, quando um empregado se comparar ao colega “preguiçoso” que ganha o mesmo que ele. E concluirá que “não é justo”.
Ao mesmo tempo, na lógica capitalista, um salário alto permite altos gastos. E haverão certamente viagens, carros e jóias comprados sem planejamento, gerando dívidas e insatisfação. A insatisfação “ligará” a necessidade de ganhar mais, ou ativará a comparação com o colega de trabalho…

O terceiro é a meritocracia. Aquilo que nós, elite brasileira juramos que existe para encobrir nossos privilégios.
O Capitalismo tem na meritocracia a “arte de se enganar”. É nela que explica os porquês: o porquê você não recebeu aquela promoção, o porquê o seu carro é mais novo e potente que o do vizinho, o porquê as férias foram no Caribe.
Mas isso não existe. Sobretudo no capitalismo.
Conseguem imaginar um filho de lixeiro virar diretor de empresa? (“Ok! Lógico que é possível”) E um filho de diretor de empresa, nascido no mesmo dia, tornar-se lixeiro?
A ausência de evolução com mérito próprio no capitalismo faz com que as cenas acima sejam quase impossíveis. (assumo que a primeira é possível naqueles 0,0001%). A desigualdade é carregada de uma geração para as próximas, pois as condições iniciais de competição (capitalista) são diferentíssimas. Um filho de diretor, mesmo sendo um boçal, terá estudado em bons colégios e frequentado bons ‘círculos sociais”, terá um salário aceitável e terá acesso aos mesmos bens e às mesmas férias no Caribe. Um filho de lixeiro poderá fazer universidade, se lutar pra isso. E só!
(como leitura, indico um conto nosso – aqui)

De positivo, e essa medida tem muitos aspectos positivos, o CEO “socialista americano” conseguiu que muitos colegas e compatriotas ponderassem sobre a atual crise mundial, também presente em seu país, e o reaquecimento do mercado. De modo unânime, os capitalistas “de essência”, previram que a economia sofreria muito menos se os salários por lá fossem menos desiguais! Ou seja, se o modelo fosse o socialista…

por Celsão Correto

P.S.: texto “original” do New York Times aqui. E duas discussões: uma apontando as repercussões aqui e o que ele deveria ter feito antes aqui. (perdão, todas as três notícias acima estão em Inglês)

P.S.2: Um escritor/blogueiro que admiro e esreveu brilhantemente sobre meritocracia (ou a ausência de), Alex Castro, infelizmente não tem mais os textos de seu blog disponíveis na rede. Para ler um trecho de seu pensamento sobre o tema, clique aqui. O texto faz parte de uma análise mais profunda – aqui

figura: montagem com figura retirada daqui

Minha amiga e nossa leitora, Jéssica Pereira, escreveu um texto brilhante. Apesar de muito crítico, o texto consegue ser suave e capaz de nos tocar no cerne dos sentimentos: a alma.

Reproduzimos então o texto aqui na íntegra:

por Miguelito Filosófico

figura daqui


por Jéssica Pereira

Meritocracia_CriancaVocê nasceu, cresceu, seus pais trabalharam, você estudou, e hoje tem um emprego.

Espero que este emprego lhe pague mais que um salário mínimo, talvez três, ou quatro, e que além de pagar o aluguel, você possa pagar um jantar pra sua namorada.

Espero que sua namorada tenha um emprego.
E que vocês juntos decidam se casar.

Espero que vocês se casem. E com o suor que cai em vossos rostos, consigam se livrar do aluguel.

Espero que ao comprar uma casa, vocês tenham filhos. E que juntando os salários que você e sua esposa ganham, vocês sejam capazes de incluir seus filhos no plano de saúde. O inverno chegou e as crianças ficam doentes com mais facilidade. E nós sabemos que o SUS não presta.

Espero que seus filhos cresçam com saúde e entrem na escola. Mas que seus salários sejam suficientes para pagar uma escola e dar educação de qualidade, porque o ensino público não presta.

Espero que seu filho se forme e ingresse na universidade. Mas numa universidade privada, porque o ensino básico público não presta e não sei o que lhe faz pensar que a faculdade pública é diferente.

Espero que seu filho deixe a vaga da faculdade pública pra mim, porque meu pai é pedreiro no interior, e ganharia só um salário se não me deixasse sozinha o dia inteiro pra colocar comida na mesa da nossa casa. Eu sou uma criança e não posso trabalhar, é crime.

Espero encontrar alguém que me dê amor em qualquer esquina, porque discurso de ódio eu escuto sair da televisão. Tô crescendo “abandonada”. Meus pais me deixam sozinha, porque precisam me sustentar. Mas sou criança, e choro quando vejo mães com seus filhos de mãos dadas, enquanto a minha corta o cabelo da madame do bairro nobre.

Passei o inverno com pneumonia, o ensino da minha escola é ruim, e o meio que vivo não colabora. Eu sou pobre.

Enxugaram meus recursos básicos e vão torcer pra que eu não mate o teu filho. Na verdade, vão torcer pra que eu mate. É pra isso que alguém vai na mídia e te convence que prisão é a solução. Você tem grana pra pagar por saúde e por educação pro seu filho, o meu pai não. É pra isso que ele trabalha, porque ele sabe que eu, criança, tenho um futuro pela frente. O meu pai acredita em mim.

Lhe fazem – de mim – sentir medo, enquanto lhe arrancam todo dinheiro.

Mas espero que seu filho tenha um emprego, e que este emprego lhe pague mais que um salário mínimo, talvez três, ou quatro, e que além de pagar o aluguel, ele possa pagar um jantar pra namorada.

* Jéssica possui um blog filosófico-poético, que também não deixa de ter seu conteúdo intimista e crítico. Para interessados, segue o link AQUI