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Seca_Ubá_02_AUbá fica na Zona da Mata mineira. É minha cidade natal, onde mora a maior parte de minha família e onde tenho a maioria dos meus principais vínculos afetivos.
Ubá sofre atualmente uma grave crise hídrica, ocasionada por um longo intervalo de pouca chuva, maximizado pelo desmatamento e não preservação de suas nascentes. E para piorar, a empresa de tratamento de água da cidade, a Copasa, assim como as últimas décadas de gestões da Prefeitura e da Câmara dos Vereadores, pouco, ou nada investiram na rede de captação e distribuição de água na cidade nos últimos 30 anos, e não se precaveram com backups e planos B para eventuais momentos emergenciais, como agora.
Também nada foi feito para o tratamento do esgoto que cai no rio que corta a cidade, ferindo as narinas, os olhos e alma de quem passa na principal avenida de Ubá.

Esse texto foi inspirado por esta situação lamentável pela qual passa nossa Cidade Carinho!


– Vô, cadê a mamãe?

– Luquinha, acho que ela foi ao shopping. Por quê? O que você está precisando?

– É que hoje na aula o professor estava falando sobre clima e relevo. Depois no fim ele sugeriu alguns temas para trabalho, separou a gente em equipes, e cada equipe escolheu um trabalho. Eu convenci minha equipe a escolher o tema “deserto”, pois a mamãe já contou algumas histórias sobre deserto para mim.

– Clima e relevo, com 8 anos de idade? É… os tempos são outros mesmo! O que sua mãe te falou sobre deserto?

– Ah, sempre quando ela lembra da infância dela, ela fica triste, e fala: “Se não fosse a maldita seca, e nossa cidade carinho não tivesse virado um deserto, a gente estaria lá até hoje, e a sua avó ainda estaria aqui entre nós.”

– Luquinha, sua mãe tinha 6 anos quando eu precisei sair de Ubá. Ela tem boas recordações, pois era menina, já as minhas recordações são bem diferentes. Se você quiser, eu te conto.

– Sim, eu quero.

– Na época que papai, o seu bisavô, era criança, o Rio Ubá, que cortava a cidade, era limpo e as crianças brincavam dentro da água. A cidade era arborizada, e tinha muitas fazendas ao redor. Numa dessas fazendas moravam papai e mãezinha, seus bisavós, e eu com meus irmãos.

– Quando você era criança ainda dava para nadar no rio?

– “Risos”… não, meu filho, não… já naquela época quase ninguém tinha coragem de entrar no rio, que já era cheio de esgoto.

– Quando foi isso, vô?

– Vixi, isso que estou contando foi lá por volta de 1985. Quando seu bisavô nadava no rio ainda era década de 50. A gente tinha sorte, pois nossa fazenda era perto da nascente do Miragaia, a principal nascente que compunha o Rio Ubá. A gente andava meia hora e já dava pra nadar!

– E o que aconteceu depois?

– Bom, eu acabei ficando com a fazenda. Casei com sua avó, e juntos tivemos sua mãe e sua tia Marta. Sua mãe nasceu há 45 anos, em 2014, ano de festa, pois foi Copa do Mundo no Brasil. Mas a situação de Ubá já estava ruim naquele ano, e parece que a partir dali foi uma bola de neve!

– Como assim bola de neve?

– Veja bem, Luquinha. O Rio Ubá, desde antes de eu nascer, foi sendo cada vez mais judiado. A cada ano era mais esgoto sem tratamento que era jogado lá dentro. Além disso, a atividade industrial e a agropecuária foram crescendo na cidade. As indústrias e os fazendeiros começaram a desmatar tudo quanto é floresta, para abrir indústria, ou para criar gado, ou plantar as coisas.
Esse povo começou a desmatar também perto das nascentes, e sem vegetação a terra absorve pouca água, e as nascentes começam a secar. Veja: cidade crescendo significa mais esgoto; gente desmatando significa menos água. O resultado foi um rio cada vez mais seco, e mais porco.

– Credo vô, mas ninguém fez nada para salvar o rio não?

– Muito pouco meu filho, muito pouco. E o pouco que foi feito, foi feito tarde demais.

– Mas é por causa disso que vocês tiveram que sair de Ubá?
Seca_Ubá_01_A

– Não. Saímos, por causa da seca. Ubá ficava numa região, onde, de vez em quando, o inverno era muito seco. Porém, enquanto a natureza estava equilibrada, a região conseguia se recuperar desses picos, as plantas voltavam a nascer, as nascentes enchiam novamente. Porém, a falta de consciência do povo, junto com a falta de providências e planejamento do Poder Público e da empresa que era responsável pela água, tirou o equilíbrio da região. Bastou acontecer um ano ruim de chuva, e tudo desandou!

– Como assim?

– Não choveu por meses… o pouco que chovia, a terra não absorvia, a água caía e ia embora. A pouca vegetação que restava começou a morrer de sede. As nascentes secaram de vez! O Rio Ubá era só esgoto, mais nada! Sem água nos rios e nascentes, pouca evaporação, o que gera menos nuvens e ainda menos chuva. É um ciclo vicioso! Seca gera mais seca! Sem nuvem, e sem água, o Sol ardia na nossa cabeça.
Os dias com 40 graus ou mais passaram a ser cada vez mais constantes.

Pra piorar a situação, a empresa de tratamento de água passou décadas sem investir direito na cidade. A cidade se tornou quatro vezes maior, mas a empresa nada fez para aumentar sua capacidade de armazenamento e distribuição. Ali tinha uma confusão de contrato com a prefeitura, contrato feito na época que eu era criança eu acho, e era um negócio complicado, cheio de detalhes sacanas e acordos políticos. E enquanto os políticos e empresários se perdiam em burocracia, o povo morria de sede.

– E o povo, vô?

– Tudo foi virando um caos. Gente reclamando, casas há mais de um mês sem água. Aí, a pouca água que chegava nas casas, começou a chegar contaminada, hospitais sem a devida higienização, escolas sem água nos banheiros, e assim começaram as epidemias. Numa dessas, sua avó nos deixou. Era setembro de 2020, começo de primavera e temperaturas na casa dos 42 graus. Eu buscava água na cidade, pois todas as 15 nascentes do nosso sítio estavam secas. A água daquela vez estava contaminada, e sua avó pegou uma bactéria. Dois dias depois ela se desidratou, por causa do calor e da bactéria, e acabou falecendo.

– Que triste, vô!

– Poucos dias depois todas nossas coisas estavam empacotadas, peguei o nosso carro, e um amigo ajudou com a Kombi dele, e nós viemos para Caxambu. Diziam que era a Cidade das Águas! Prometi para mim mesmo que não sofreria mais por falta d’água! “risos”

– Então foi assim que a gente veio parar aqui, legal! Mas e o que aconteceu com Ubá?

– Luquinha, menos de 10 anos depois Ubá virou uma cidade fantasma. As famílias se foram, e a história da cidade se diluiu. O pouco que sobrou, está na cabeça das pessoas que viveram lá, e em alguns acervos de livros de alguns que se dispuseram a conservar a história. Hoje em Ubá, e num raio de 20 km ao redor da cidade, chove no máximo 30 vezes ao ano. Normalmente são pancadas de chuva, e a terra não absorve nada.
O Rio Ubá virou um longo buraco vazio. A cidade parece um caldeirão, com destroços de casas abandonadas, caindo aos pedaços, e temperaturas acima dos 40 graus no verão. A antiga Mata Atlântica deu lugar a uma vegetação semiárida, tipo a Caatinga. Sabia Luquinha, que a maior parte dos desertos do mundo já foram florestas um dia?

– Uai, não sabia não.

– Pois é. Esse é um processo natural, que acontece às vezes mesmo sem a interferência do homem. Porém, com a interferência do ser humano, esse processo passou a ser cada vez mais comum. Nós aceleramos mudanças que aconteceriam em séculos, milênios, ou talvez nunca, e fazemos com que elas aconteçam em poucas décadas. Ubá é um exemplo disso!

por Miguelito Formador

Para quem ficou interessado sobre os assuntos seca, desertos, e o resultado da interferência do homem na natureza, segue um sequência de links-referência:

  1. Um fenômeno provocado pelo homem que ameaça todo o Planeta: AQUI 
  2. Descubra como se formam os desertos: AQUI
  3. Como surge um deserto: AQUI
  4. Formação e Transformação do Relevo: AQUI
  5. Transformação das paisagens naturais pelo homem: AQUI
  6. Desertificação: AQUI

* Este mesmo texto, com pequenas variações, foi publicado no jornal Gazeta Regjornal, de Ubá-MG. As fotos foram fornecidas pelos editores do jornal.